#8 Encontro Videográfico: 28, 29 e 30 de Outubro 



Fernando José Pereira 




Into the black [white foggy days] (2008)vídeo Pal, som stereo, dimensões variáveis, 07'18'' 


Conversa com David Santos dia 28, 5ºfeira, às 19h




Violência Opaca 



No caminho percorrido até à escuridão deste dia enevoado de branco, não vemos o que ouvimos. Neste trajecto videográfico, realizado por Fernando José Pereira, a omnipotência do som induz uma espessura que suplanta as imagens, como se as paisagens encobertas pelo nevoeiro ocultassem uma visualidade trágica. Planos opacos que irrompem ao longo do vídeo, cortes de fôlego que estabilizam a intensidade dramática que emerge sonoramente. Ouvimos, mas não vemos: um respirar, um rodar de uma chave, objectos arrastados, uma porta que se abre ou que se fecha.
O tempo passa, como nos evoca a voz, num eco omnisciente do narrador. O tempo passa e a tensão dramática adensa-se, inconclusiva, pois não existe desenlace neste ciclo temporal de um dia.
A violência permanece suspensa, sem vislumbre de factualidade, depositada unicamente no tempo que inexoravelmente passa. Não reside nas imagens nenhum indício claro da violência exercida sobre este prisioneiro. Somente o plano picado nos sugere a vulnerabilidade da sua condição, ao pretender subjugá-lo sob o nosso olhar. São, sim, as vozes do texto de Samuel Beckett[1] a tornar as imagens cúmplices da relação de poder instituída.

E... não disseste nada? Não.
Choraste? Sim.
Gritaste? Sim.
Pediste misericórdia? Sim.


Nunca nos é indiciada a razão de tal exercício de violência. Não sabemos o que seria suposto o torturado revelar, nem o que se pretende que ele confesse. Somos expostos a uma relação de poder sem conhecer as suas fundamentações, mas reconhecemos assustadoramente os seus códigos. E é aqui que somos trespassados pela inquietude. Até porque o que nos espera, no exterior desta clausura, não é a cegueira momentânea provocada pela luz incandescente do Sol, tal como Platão nos descreve na experiência do prisioneiro ao sair da caverna[2]. O exterior é um espaço opaco, adensado por um nevoeiro branco que oculta ciclicamente a paisagem, onde a súplica por ajuda nos remete invariavelmente para a condição do encarcerado.
A visibilidade nunca é resgatada neste vídeo. Mesmo a intensidade psicadélica dos pontos lumínicos, que se ritmam ao som de “Interstellar Overdrive"[3], não recuperam a claridade. Nem ferem este plano contra-picado e embaciado que revela, não uma personificada força atemorizante, mas sim o próprio artista que, com a câmara desfocada e voltada para si, assume o lugar do inquisidor. E aqui o êxtase do intolerável faz com que a câmara, em movimentos frenéticos, vá desenhando um outro espaço enclausurado: o atelier.
O próprio ímpeto de inverter o olho da câmara, que anteriormente subjugou o aprisionado, produz uma oscilação entre verso e reverso, reveladora da relação biunívoca entre torturado e torturador. Pois mesmo Zeus, responsável pela condição encarcerada em que colocou Prometeu por este lhe ter roubado o fogo para o dar aos mortais, se encontrava refém do segredo guardado pelo seu prisioneiro, agrilhoado no monte Cáucaso. Segredo esse capaz de pôr término ao seu reinado sobre os deuses e os homens.


Hermes - Foi exactamente por esta arrogância que vieste dar a este porto de dores.


Prometeu - Fica a saber claramente: não trocaria a minha desgraça pela tua servidão.[4]





Maria Mire






[1] “What where", peça de teatro escrita por Samuel Beckett, em 1983.
[2] PLATÃO - A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996 [trad. de Maria Helena da Rocha Pereira].
[3] Tema pertencente ao álbum “The Piper At The Gates Of Down”, editado por Pink Floyd em 1967.
[4] Ésquilo - Prometeu Agrilhoado. Lisboa: Edições 70, 2001 [trad. de Ana Paula Quintela Sottomayor]. pp. 78-79.




Notas Biográficas:
Fernando José Pereira (Porto, 1961) Licenciou-se em Artes Plásticas-Pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto em 1987 e doutorou-se em Belas Artes na Faculdade de Belas Artes de Pontevedra (Espanha). Recebeu várias bolsas de estudo e investigação da Fundação Gulbenkian. Expõe regularmente em galerias (Graça Brandão e Marta Vidal do Porto, João Graça em Lisboa) e em várias instituições museológicas (Museu de Serralves, Porto; Centro Cultural de Belém, Lisboa; Museu do Chiado, Lisboa; Culturgest, Lisboa; Círculo de Artes Plásticas de Coimbra). Participa em Bienais e mostras internacionais (9ª Bienal de Sharjah, Sharjah, 2009, III Bienal Ibero-Americana de Arte Contemporânea, Lima, Peru, 2002; Bienal de Pontevedra 1998) e em exposições colectivas em cidades como: Londres (London Festival of Europe, 2008); Berlim (Transmediale exhibition “Deep North”2009, “Die Anthologie der Kunst”, 2004). Tem obras nas colecções públicas: Fundação de Serralves, Instituto de Arte Contemporânea, Museu da Cidade de Lisboa, Colecção PLMJ, Fundação Ilídio Pinho e Universidade do Porto.


Exposições recentes: 
(2010) 
Individuais: “The artist as arctic explorer, #1 permafrost (barentsburg)”, Gal. Adhoc, Vigo, España.; “Permafrost (barentsburg), Northern Stages, Newcastle, UK. 
Colectivas: “Ceci n’est pas une rétrospective - In.transit +wc.container (1999-2009)”, Padaria Independente, Porto, Portugal; “VideoChannel | Cologne 2010 - Portuguese videoart”, Koln, Deutschland; “Sobre ilhas e pontes”, Galeria Candido Portinari, RIo de Janeiro, Brasil; “Impresiones y comentarios - Fotografía Contemporánea Portuguesa”, Fundació Foto Colectania, Barcelona, España; “Kaunas Photo Festival - Portuguese night”, Kaunas, Lithuania. 
Mais informações em: http://www.virose.pt/fjp

David Santos nasceu em Vila Franca de Xira, em 1971. Historiador, curador e crítico de arte, dirige desde 2007 o Museu do Neo-Realismo (V. F. Xira), onde faz curadoria de exposições de arte moderna e contemporânea, sendo responsável pelo ciclo “The Return of the Real”. Durante mais de dez anos, foi docente de História de Arte Contemporânea (IADE, em Lisboa, e na Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, Porto). Desde 1996, tem vindo a publicar artigos e ensaios sobre arte em catálogos, jornais (O Independente) e revistas especializadas (Arte IbéricaArq./a; Artecapital.net). Tem participado em palestras, conferências e mesas-redondas no país e no estrangeiro. É mestre em História Política e Social, pós-graduado em História da Arte e licenciado em História, variante de História da Arte. Prepara neste momento provas de doutoramento em Arte Contemporânea.