#6 Encontro Videográfico: 24, 25 e 26 de Junho 


João Sousa Cardoso 



Os Republicanos (2009), Mini-DV transferido para DVD, Som Stereo, Cor, 32´


Conversa com José Bragança de Miranda dia 24, 5ºfeira, às 19h




De um Vermelho Vivo


a inventar a história toda na soleira da porta
a pouco e pouco inventando para ti
tu a reinventares-te pela milionésima vez
 esquecendo de todo em que lugar estavas”[1]

Samuel Beckett


O percurso videográfico pela exposição “Os Republicanos”[2], realizada por João Sousa Cardoso em 2009, não se apresenta como um simples registo, nem produz somente um documento sobre a mesma. É antes uma segunda vida de um trabalho que emerge e toma corpo por direito próprio neste sexto encontro da Téléthèque.
Começamos no exterior, na rua. A montra de um supermercado, o som de uma caixa registadora, uma câmara na mão. Uma rua íngreme que se sobe, à medida que esmorece o som do leitor de código de barras dos “trintas dinheiros”[3], e se vai revelando o destino do percurso. Um primeiro olhar voyeurista através de um vidro e, por fim, a plena imersão num espaço contaminado luminicamente por uma luz de um vermelho intenso. A câmara acoplada ao olho do artista estabelece um percurso, de afinidades e de importâncias, pelas imagens expostas. Um olho que compõe. A ausência deliberada de zoom torna a procura do pormenor, ou a tentativa de enquadramento, num acto físico. Pressentimos um corpo que se desloca e que é impelido para junto do que quer ver. O movimento empático da câmara restitui e enfatiza a ideia de montagem, estruturadora da própria exposição, oferecendo-nos contudo um novo gesto compositivo sobre a mesma matéria.
Constituído por um único plano-sequência que prescinde do corte e da montagem, “Os Republicanos” tal como “A Arca Russa” de Aleksandr Sokurov, filmado no Hermitage em São Petersburgo, é também um percurso por um vívido espaço expositivo. Aqui, João Sousa Cardoso prescinde do quadro vivo e da encenação do olho da câmara, mas não da composição cenográfica, nem do carácter extremamente figurativo que ressalta das imagens coladas nas paredes de “Uma Certa Falta De Coerência”. Aqui não vemos desfilar personagens da história da Rússia czarista, mas sim imagens fotocopiadas a preto e branco em diferentes escalas que, desfasadas do seu contexto histórico e agrupadas de forma anacrónica, se prestam a produzir outras e novas imagens. Como se o sentido de cada uma delas tivesse sido esventrado e permanecesse agora depositado na justaposição, na relação tensionada com as restantes iconografias contíguas.
Assim, como no Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, não se procura “libertar invariantes da história da figuração, mas criar, sob um ambiente experimental, tensões entre imagens, após tê-las tornado comensuráveis através da reprodução fotográfica”[4].
Ou seja, deparamo-nos com um dispositivo visual que se organiza sob uma iconologia dos intervalos. Um regime de intensidades entre figuras, de raiz reflexiva, “no qual a rede de intervalos desenha as linhas de fractura que separam, ou organizam, as representações em constelações[5].
Resta-nos assim perguntar que republicanos encontramos indiciados pelo olho desta câmara? Republicanos carnais, senão mesmo libidinosos, que encontram sem procurar a paridade do género. Republicanos que não se engasgam com as assimetrias iconográficas, capazes de agregar numa mesma deambulação o som de frases cantadas como “Deixou a dor a correr e a saudade na nossa mesa, deixou o amor por fazer e a tristeza no ar”, seguido da épica “Bem unidos façamos, nesta luta final!
Uma terra sem amos, A Internacional!”. Republicanos que não excluem, incluem, que não segregam, congregam. Mas que seleccionam, dispõem e compõem, no desejo ávido de atear o discurso.



Maria Mire





[1] Beckett, Samuel, Aquela vez e Outros textos, 1ª ed, Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2003. Tradução de Diogo Dória e Luís Miguel Cintra. p. 31
[2] Os Republicanos , exposição de João Sousa Cardoso, no “Uma Certa Falta de Coerência”, Porto, entre 18 de Setembro e 10 de Outubro de 2009. 
[3] “Nenhum deles é estanque e todos se relacionam com a economia. Mas é o modo como se entrançam que garante as qualidades da circulação entre o verbo e os dinheiros. E, filhos que somos da catolicidade, valerá a pena interrogarmo-nos se será o verbo ainda o mesmo que biblicamente era o princípio e se os dinheiros serão sempre os tais trinta da traição que mata.” Cardoso, João Sousa, “Os dinheiros e a ruína”, in A Economia do Artista. Porto: Braço de Ferro, 2010. p. 197
[4] Michaud, Philippe-Alain, “Zwischenreich: Mnemosyne ou expresividade sem tema” in The Mnemosyne Project. Coimbra: Encontros de Fotografia, 2000. p.20
[5] Michaud, Philippe-Alain, ibidem.


Notas Biográficas
João Sousa Cardoso
Doutorado em Ciências Sociais, pela Universidade Paris Descartes (Sorbonne). Docente na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa) e na Universidade Lusófona do Porto.
Comissariou, em 2000, o projecto multidisciplinar Arritmia – As inibições e os prolongamentos do Humano, no Porto. Comissariou Os Dias de Janus – Perspectivas sobre a passagem do cinema ao vídeo em Portugal, na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em 2006.
Tem desenvolvido, desde 2001, projectos criativos no cruzamento da estética com as ciências sociais. Apresentou o filme 2+2, no Jeu de Paume, em Paris, em 2008.
Artista em residência na Fondazione Pistoletto (Biella, Itália), em 2002. Artista em residência de Expédition – Plateforme Européenne d’Échanges Artistiques, a convite dos Laboratoires d’Aubervilliers, nas cidades de Amesterdão, Viena e Paris, entre 2007 e 2008. Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, entre 2005 e 2009.
 Escreve regularmente crítica e ensaio para várias publicações, tendo colaborado regularmente com a revista de artes plásticas Arte Ibérica (Lisboa), entre 2000 e 2001, e o Teatro Nacional de São João (Porto), desde 2003.

José Bragança de Miranda
Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa (1990) e agregado em «Teoria da Cultura» (2000) na mesma Universidade. Actualmente é Professor Associado do Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas dessa Universidade, colaborando ainda como professor catedrático convidado na Universidade Lusófona. É investigador do «Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens» (CECL), de que é director. Autor de numerosos ensaios nas mais diversas áreas da cultura contemporânea, das suas publicações destacam-se os seguintes livros: Analítica da Actualidade (Vega), Política e Modernidade (Colibri), Traços. Ensaios de Crítica da Cultura (Vega), Teoria da Cultura (Século XXI), Síntese (UL), Espaços, Queda Sem Fim (Vega), O Ardor da Arte (Caminho), Conversaciones con Jorge Molder (La Fabrica) e Envios. Uma Experimentação Filosófica na Internet (Vega).